Recentemente, no Distrito Federal, um senhor de 69 anos de idade registrou uma ocorrência em face de um rapaz que com ele convive e que constantemente o agride, além de fazer uso de drogas1.
Desta forma, o Ministério Público requereu a aplicação de medidas protetivas de urgência previstas na lei Maria da Penha (art. 22, lei 11.340/06), por entender ser cabível nesse caso, ainda que comumente aquelas sejam aplicadas quando se trata de vítima do sexo feminino.
É sabido que, em alguns casos, a vítima na convivência familiar é o próprio homem. Seja pela violência da mulher, seja pela dos filhos, dos pais ou então por pessoas que apenas frequentam o mesmo lar (como parece ser o caso em discussão). Assim, diante de uma realidade indiscutível, pessoas do sexo masculino também acabam sofrendo violência doméstica e são carecedoras da mesma proteção.
Com o respeito devido, nosso legislador se equivocou ao se referir, no texto legal, exclusivamente à violência praticada no âmbito familiar contra a mulher. Aliás, a própria lei preocupou-se em defender o lar, como sendo o local de convivência entre pessoas consanguíneas ou unidas pelo afeto e, isoladamente, destacou a mulher como a destinatária da proteção. Melhor seria se a referência abrangesse a praticada no convívio da família, seja contra homem ou mulher.
Isso porque todas as situações de abusos e violência estariam acobertadas pela lei 11.340/06, não se exigindo uma elasticidade na interpretação do operador do Direito. Igualmente, é de se questionar se um garoto, que constantemente é agredido pelo pai, ou pela mãe, será apenas protegido pelo ECA (lei. 8.069/92) ou também poderá ter em seu favor a aplicação de medidas protetivas de urgência, tendo em vista a convivência familiar.
Do mesmo modo, se um idoso é agredido, ameaçado de morte por seus filhos, ou então por alguém que com ele conviva, ser-lhe-á aplicado apenas o Estatuto do Idoso, ou pode se esticar o alcance da Lei Maria da Penha?
Prima facie, em uma resposta de "bate-pronto", sem a necessária análise de todo o conjunto normativo, dos princípios e, principalmente, das regras hermenêuticas, o mais apressado defenderia que somente a mulher poderia ser vítima de violência doméstica e, portanto, somente a ela poderia ser aplicada a Lei Maria da Penha.
Entretanto, não pode ser esse o entendimento a prevalecer, pela fragilidade de sua própria fundamentação. A lei traz em seu bojo um conteúdo valorativo que deve ser alcançado pelo intérprete, ou como diz Reale, "não são leis de causalidade, como as da Física, mas leis de tendência, isto é, leis que asseguram certo grau de certeza e previsibilidade, visto se basearem em dados estatísticos e probabilísticos, ou por terem sido estabelecidas "com rigor", à vista da observação positiva dos fenômenos ou fatos sociais"2.
É bem verdade que resta evidenciada uma lacuna legislativa, até porque "por mais previdente que seja o legislador, é possível que não haja regulado algo que deveria regular... e a lei pode ser lacunosa, mas o Direito não".3
Assim, quando se está frente a uma lacuna da lei, torna-se imperioso se valer de regras de interpretação, para que se possa alcançar a mens legis.
Dentre várias existentes e conhecidas, podemos destacar, para o caso em questão, a analogia que, em síntese, pode ser definida como uma autointegração do Direito. Quer dizer, valendo-se de um caso concreto, aplica-se a mesma interpretação a uma situação específica que, em que pese não ser idêntica, guarda grandes traços de semelhança com a primeira4. A analogia utilizada no caso em discussão faz concluir que as medidas protetivas não são exclusivas das mulheres e delas podem lançar mão quem, de qualquer forma, habite o lar, aqui entendido como o reduto familiar. Ou, como muito bem definia Neruda: a poesia é útil para quem ela servir.
Portanto, valendo-se da proteção concedida à mulher, pode-se perfeitamente, pela via da analogia, garantir que sejam aplicadas as medidas protetivas de urgência (art. 22, lei 11.340/06) a um menino, homem ou idoso que estejam nessa peculiar situação de violência doméstica e familiar.
Ou seja, partindo de um caso concreto (violência familiar contra a mulher), estica-se o alcance da norma (aplicação a pessoas do sexo masculino) a uma situação que, embora não seja idêntica, é bastante parecida (a violência empregada no seio familiar). E, nesta ginástica interpretativa, chega-se a uma conclusão interessante: a lei aplica-se a todos, sem qualquer distinção, desde que a violência ocorra intra muros familiar.
De forma ainda tímida, vem sendo aplicada as medidas protetivas da lei Maria da Penha para proteger homens que são vítimas de agressões, ameaças e até mesmo perturbação por parte de ex-mulher, com a intenção de prejudicar a nova convivência familiar, conforme se observa de uma decisão da justiça de Santa Catarina, no ano de 20095.
Sem se afastar ainda da providencial interpretação, a Seção Judiciária do Distrito Federal, utilizando a mesma linha de raciocínio, deferiu medida liminar em mandado de segurança6 concedendo licença paternidade pelo período de cento e vinte dias a um pai, cuja esposa faleceu ao dar à luz a um filho. A lei originária teve a mãe como única destinatária, mas a partir da isonomia entre homens e mulheres assegurada constitucionalmente, é de rigor que o pai, na falta da mãe, assuma seu posto e seja beneficiado pela licença maternidade. O favorecido será o recém-nascido que receberá do pai os cuidados indispensáveis ao seu desenvolvimento e, acima de tudo, estreitar o vínculo familiar.
Quando a lei se refere a determinadas pessoas cria normas de conduta que se tornam incompreensíveis para aquelas que foram excluídas. Por isso que, conforme esclarece Hart, "o direito deve referir-se preferencialmente, embora não exclusivamente, a classes de pessoas e a classes de condutas, coisas e circunstâncias; e o êxito de sua atuação sobre vastas áreas da vida social depende de uma capacidade amplamente difusa de reconhecer certos atos, coisas e circunstâncias como manifestações das classificações gerais feitas pelas leis".7
Finalizando, num regime democrático onde prevalece o estado de direito, a isonomia tem que ser constitucionalmente garantida para que possa se tratar as situações semelhantes de maneira semelhante.
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