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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O emprego do "contra" e do "em face" na terminologia processual: distorção a corrigir

É conhecida a importância do rigor terminológico no estudo científico. No Direito - ainda que se possa controverter sobre sua qualificação como verdadeira Ciência - isso não é diferente. E, por coerência, assim também ocorre no Direito Processual. Não se trata de preciosismo. Trata-se de, respeitadas as convenções estabelecidas e aceitas na denominação de certos fenômenos e institutos, designá-los de forma correta, para deles extrair os desdobramentos adequados. Para ilustrar, e sem entrar na polêmica sobre a conveniência - ou não - de o Legislador enunciar conceitos, fato é que uma sentença não é uma decisão interlocutória; que por sua vez não é um despacho de mero expediente. A diferenciação é fundamental para determinar se e qual o recurso cabível em dada situação. É certo que há distinções aparentemente menos relevantes: recursos são providos ou desprovidos, e não julgados procedentes ou improcedentes; não se deve qualificar a ação como "ordinária" ou "sumária" porque tais atributos melhor se ajustam ao procedimento; não convém chamar-se o reexame necessário de "recurso de ofício" porque o recurso é sempre meio voluntário. Mas, mesmo nesses exemplos, o emprego defeituoso da linguagem, se não gera prejuízos relevantes, é um mau sinal: quem não domina a terminologia muito provavelmente não domina a técnica de forma mais ampla e, daí para o erro mais relevante é um passo. Entre nós, preocupou-se com esse rigor e procurou disseminá-lo o eminente Professor Cândido Rangel Dinamarco. Exemplo significativo disso é seu clássico artigo denominado "Vocabulário de Processual", inserto na obra Fundamentos do Processo Civil Moderno. Nesse estudo, dentre outros, o Mestre ensinou não ser correto o emprego da expressão "ação contra o réu" porque, em síntese, "a ação tem por titular o Estado e não o adversário". Assim, é lícito afirmar que a demanda é proposta "com relação a alguém" ou "em confronto" do demandado. Embora não possa afirmar com certeza absoluta, extraio dessa lição - que, convém dizer, não corresponde exatamente à unanimidade da doutrina - e de sua disseminação por alunos e discípulos do Mestre o que progressivamente veio a se tornar generalizado emprego, na linguagem forense, da terminologia traduzida na expressão "ajuizar ação em face do réu". Contudo, com o passar dos anos, a experiência na advocacia e na judicatura me permitiu constatar um considerável desvirtuamento da lição: a palavra "contra", ao que tudo indica, foi substituída pela expressão "em face" em outras situações que não exatamente a da propositura da demanda. Apenas para ilustrar, não raramente se fala também em "recurso em face da sentença". Em suma: em matéria de processo, parece que a palavra "contra" foi, por muitos, simplesmente substituída por "em face". A lição inicialmente correta e valiosa ganhou uma espécie de interpretação "extensiva"... O equívoco é evidente. Como assinalado, diz-se que a demanda é "em face" do réu na premissa de que ela é contra o Estado. Não se quer tirar o peso do encargo que a litispendência representa para o demandado porque, no plano material, é evidente que a controvérsia significa contraposição entre partes. Sob essa ótica, uma parte está contra a outra porque, se estivessem em situação de consenso, não estariam a litigar em juízo (exceto nos casos de processo necessário, em que a litispendência continua, de qualquer modo, a ser um peso). Isso fica claro mesmo no processo penal, em que se discute a existência de lide. Se de uma simples investigação normalmente se diz pesar "contra" alguém, o que dizer de um processo?... Assim, a parte que recorre não se insurge "em face" da sentença ou decisão. O recurso - ainda que preferencialmente de forma fundamentada e elegante - hostiliza ou ataca o ato recorrido. No dizer de alguns, o recurso dirige "farpas" contra a decisão recorrida (expressão ironizada por Barbosa Moreira, em conferência que proferiu certa feita na Associação dos Advogados de São Paulo). Portanto, um recurso, sem meias ou erradas palavras, não é "em face" de nada, mas é contra o ato recorrido. Quando muito, para seguir a lógica que inspirou a expressão "ação em face de", o recurso seria "em face do adversário" (recorrido) porque, como no caso da ação, o recurso seria dirigido contra o Estado (agora em Instância diversa). Penso que o "homem cordial" que habita em nós - e que Sérgio Buarque de Holanda bem analisou em seu clássico Raízes do Brasil - gera distorções não apenas em nosso comportamento, mas também em nossa linguagem. E, nesse contexto, penso que a substituição do "contra" pelo "em face" é disso uma boa ilustração: o primeiro pode indicar contundência que aparentemente não convém a quem evita contraposições como forma de preservar, quiçá de forma inconsciente, uma relativa pessoalidade das relações profissionais; e, em alguma medida, a descaracterizá-las como tais. Já a segunda fórmula - a do "em face" - é, por assim dizer, mais cordial do que deduzir algo "contra". É uma espécie de diminutivo - no caso ideológico; diminutivo que é um dos preferidos expedientes da mencionada cordialidade. O que também chama a atenção no fenômeno exposto é a circunstância de que uma lição correta, quando disseminada, pode ganhar vida própria e, a partir de interpretações equivocadas ou simplesmente arbitrárias, ter traídos seus limites iniciais. Quem tem a responsabilidade de ensinar - especialmente nas salas de aula - deve sempre estar atento a essa possibilidade. Enfim, pode ser que a teoria acima enunciada seja incorreta. Contudo, de volta ao início, alvitra-se que a terminologia seja empregada de forma adequada correta e que o "em face" não tome o lugar do "contra" quando essa for a palavra que melhor designar o fenômeno descrito. A se fazer isso é certo que o exercício da jurisdição não mudará. Mas, a ciência processual (se é que ela existe) ficará melhor assim. Jornal Carta Forense, terça-feira, 3 de janeiro de 2012

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